Civilização de Mimados

No que toca ao desenvolvimento das condições básicas de vida tal qual hoje conhecemos, não se conhece período histórico tão generoso quanto o século XIX. Em comparação com séculos pretéritos, nunca tanta riqueza foi gerada, nunca tantas pessoas galgaram posições nas camadas sociais. Essa época de bonança econômica e social desenvolveu-se em meio ao que podemos chamar de era de ouro do liberalismo. Não se pretende aqui fazer uma defesa deste modelo político-econômico. Ninguém é tão tolo ao ponto de imaginar que o mercado se guiaria sozinho e respingaria pingos de amor e felicidade no colo da humanidade. Friedrich Hayek, em seu célebre O Caminho para a Servidão, cuja primeira edição é de 1944, ao mesmo tempo em que defendia o livre mercado como mola propulsora para o desenvolvimento, chamava a atenção para a necessidade de um ambiente de regulação estatal que lhe garantisse segurança jurídica, sobretudo para evitar monopólios e prejudicar aquilo que era caro ao liberalismo: a liberdade de iniciativa.

E foi o próprio Hayek que afirmou que o sucesso do liberalismo tenha, talvez, plantado a semente de seu próprio fim. De um universo rural, com precárias condições de vida, onde morrer de parto era tão comum quanto espirrar, uma febre era quase uma certidão de óbito, e o Estado poderia confiscar o patrimônio de seus cidadãos na calada da noite sem qualquer constrangimento, vivenciamos um extraordinário desenvolvimento nos mais variados campos do saber. Da medicina até a engenharia, da astronomia até o estado de direito, nossa noção de vida, de mundo e de universo, mudaria para sempre.

E tal como filhos que, nascendo em meio à abastança tornam-se indiferentes às dificuldades outrora enfrentada pelos pais, essas conquistas civilizatórias, na medida em que passavam a fazer parte do dia a dia das pessoas, eram vistas não mais como conquistas: tratavam-se agora de necessidades. E daí para virarem direitos, palavra mágica da pós-modernidade, não ia demorar muito. Finalmente, a dignidade da pessoa humana passou a identificar-se com essas recentes querências (ocasião em que me pergunto se gerações que habitaram o planeta nos últimos 130 mil eram menos dignas que as atuais. Confesso que o contrário me soe mais verídico).

Pois bem. Já sabido o que era bom, agora perguntava-se como garantir essas conquistas. E a receita encontrada pela intelligentsia para manter e estender essa crescente gama de direitos fundamentais foi romper com o que afirmavam estar atravancando seu desenvolvimento. Práticas e costumes tradicionais na sociedade, inclusive (e principalmente) o livre mercado e a liberdade do indivíduo frente ao Estado, foram identificados como os principais culpados. Não deram-se conta de que avanço de suas vidas, e a própria possibilidade de vislumbrar uma sociedade melhor, só foi possível em razão daquilo que condenavam como retrógrado. O liberalismo, de propulsor da civilização, passou a ser visto como causador das aflições da humanidade. E a solução ficou clara: mais intervenção estatal, menos liberdade, mais coletivismo, menos individualidade. Auschwitz era só uma questão de tempo.

Mas voltemos ao tema deste ensaio. Dadas essas circunstâncias históricas, começava-se a vislumbrar o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de mal-estar com a modernidade. Se a doutrina cristã, extremamente sofisticada (lembrando que o autor do ensaio é ateu), via o homem como fraco, limitado e cercado de tentações; como alguém que precisava de disciplina e autocontenção para evoluir na vida; doutrinas posteriores, como Rousseau, Marx e Foucoult, passaram a ter leitura diametralmente oposta. Para eles o homem nascia perfeito, puro e livre de pecados. A vida em sociedade é que o destruía. De responsável pelo seu destino, o homem passou a ser uma vítima dele.

A irresignação com tradições – sobretudo o pensamento liberal -, e o fomentado ideário da sociedade malvada, talvez tenha sido a semente para o apogeu do movimento romântico (cuja origem remonta o sec. XVIII). O homem buscava fugir da vida industrializada, não queria ser parte de um processo que poluía sua moral, que o afastava da pureza imaculada do berço. A busca da noite, a vida no campo e a nostalgia com o passado eram maneiras de se afastar das atribulações e das maldades da sociedade moderna. Numa palavra, o romantismo do século XX pode ser definido por isolamento. De lá para cá, as causas permaneceram, mas os efeitos mudaram. Se o romântico do século XVIII buscava autoconhecimento se isolando por meses no topo de uma montanha; para o romântico atual, de nada basta o isolamento se ele não puder compartilhar o momento no instagram ou no facebook. O pôr do sol não é nada se não for visto da tela do celular.

E cá chegamos. O grande problema dessa geração de mimados vomitando sentimentos é que a intensidade da demonstração da dor passou a ser vista como a intensidade da própria dor. Há, não se nega, um quê de verdade nisso tudo. Se as pessoas não são iguais, logo suas dores também não o são. Contudo, do fato de as pessoas sofrerem com intensidades diferentes não se pode conceber que a exteriorização da dor possa (ou deva) ser considerada um termômetro digno de crédito para esse sofrimento.

Seguindo esta linha, Theodore Dalrymple, psiquiatra e ensaísta, lembra que a própria noção de empatia estaria gravemente prejudicada. Imaginar, exemplifica Dalrymple, um sujeito que chora copiosamente pela perda de uma moeda de dez centavos. Agora imagine-se um sujeito que perdeu um ente querido em uma tragédia, um filho, e administra sua dor na privacidade e retiro que o luto recomenda. Fossemos medir a dor alheia pela demonstração do sofredor, nossa noção de empatia ficaria desvirtuada da realidade. Conclusão: na tentativa de sermos mais empáticos, ou mais humanos, como alguns preferem (seja lá o que isso queira significar), não estaríamos sendo nem uma coisa nem outra.

E se a valorização da dor alheia segundo a medida de sua demonstração já é por si uma ideia asquerosa, o problema vai às raias do absurdo quando ganha status de política pública. Com efeito, grupos representativos de minorias constantemente arrogam para si a qualidade de vítimas sociais. Ninguém nega que, por exemplo, exista preconceito e discriminação contra negros, fato que deve ser prevenido na infância e reprimido com cadeia. Mas tomar essa discriminação como premissa para estabelecer algum dever de reparação histórica é um completo contrassenso, notadamente quando essa política é afiançada com o dinheiro dos outros.

Nada obstante, essa parece ser a posição do Supremo Tribunal Federal, esboçada no recente julgamento da constitucionalidade de mecanismos para verificar a autenticidade da autodeclaração de raça para concorrer a cotas de concursos públicos. Questionado se as referidas cotas ofenderiam o princípio da proporcionalidade, conclui o STF no sentido de:

(...) haver um ganho importante de eficiência. Afinal, a vida não é feita apenas de competência técnica, ou de capacidade de pontuar em concurso, mas, sim, de uma dimensão de compreensão do outro e de variadas realidades. A eficiência pode ser muito bem-servida pelo pluralismo e pela diversidade no serviço público.    
Pasmem!

Como e em que medida a eficiência do serviço público ganhará com o pluralismo? O absurdo da afirmação está em sugerir que o pluralismo é uma virtude a ser buscada em detrimento de outras, isto é, um fim a ser considerado em si mesmo. Repare que, fôssemos levar essa bobagem adiante, membros do Estado Islâmico ou dos Houthis poderiam, em nome da pluralidade, bem servir o serviço público. Absurdo! Mas no âmbito do Supremo vai ficando cada vez mais evidente que o argumento da autoridade distancia-se a passos largos da autoridade do argumento.

Noutro trecho, o STF, mostrando sinais claros de que encampou a tese da autoindulgência como motivo para prestação de políticas públicas ainda refere o seguinte:

Quanto à autodeclaração, prevista no parágrafo único do art. 2º da Lei federal 12.990/2014, o Supremo asseverou que se devem respeitar as pessoas tal como elas se percebem. Entretanto, um controle heterônomo não é incompatível com a Constituição, observadas algumas cautelas, sobretudo quando existirem fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração.
Pasmem outra vez!

“Se devem respeitar as pessoas como elas se percebem. ” A expressão, além de ser um clichê dos mais vagabundos (coisa que rola solta nos programas de auditório da Globo), peca por não estar fundamentada dentro de um contexto maior, antes parecendo ter sido lançada dentro da decisão de um tribunal que deveria prezar pelo tecnicismo de suas conclusões. A verdadeira conclusão que se tira é que o sentimentalismo, esse câncer viral, parece ter tomado conta do último refúgio da sobriedade e serenidade, a magistratura. Respeitar as pessoas como elas se percebem significa (perdoem a repetição) que a consideração deve ser dispensada na medida do afirmado, e não na medida de fatos objetivos. Neste sentido, dizer que é negro é se incluir em um grupo de vítimas autoproclamadas que, justamente (e somente!) por essa razão ganha autoridade moral para qualificar-se como objeto de políticas públicas diferenciadas.

Essa ideia é questionável por diversos motivos. A uma que incorre no clássico equívoco de toda política inclusiva: prestigiar grupos abstratos e desconsiderar pessoas reais. Sustentar que uma reparação histórica é devida a alguém que nasceu no seio de uma sociedade que lhe granjeou níveis de segurança e estabilidade que, pouco tempo atrás, Sua Majestade, o rei Luis XV, sequer poderia imaginar, e somente por se enquadrar em um grupo que se autoproclama vitimado, é um atentado contra o bom senso. De outro lado, num estado de direito, a obrigação de reparar deve recair em quem deu motivo para o dano. Destarte, sugerir que determinado grupo é merecedor de reparação histórica, é o mesmo que dizer que os não pertencentes a este grupo têm o dever de reparação. Eis o problema de prestigiar grupos ao revés de indivíduos: alguém que nunca cometeu nada merecedor de sanção, terá de reparar alguém que, no maior das vezes, nunca sofreu o alegado dano. Haja tributação para bancar isso tudo!

A reparação histórica, segundo essa ideia melosa, se deve ao fato da histórica discriminação sofrida por povos de raça negra. Este argumento, ainda que verídico (pois escravidão é um fato e não uma teoria), é insuficiente para autorizar o pleiteado dever de reparação. A afirmação ignora boa parte da história da humanidade. Em alguma medida, todos os povos, todas as nações e todos os Estados sofreram discriminação. Fôssemos buscar igualdade nas reparações históricas, só para dar alguns exemplos, teríamos que incluir no rol de beneficiários os judeus (em razão do holocausto), os homens paraguaios (em razão da guerra do Paraguai ter dizimado 90% da população masculina daquele país) e as mulheres indianas (por sofrerem terríveis provações em um ambiente onde as famílias escolhem seus maridos ao bel alvedrio). Não vou falar das mulheres do mundo árabe em geral, estas merecem um ensaio a parte.

Mas ninguém pensa em incluir esses grupos na seguridade social dos sentimentos. Até porque sequer seria necessário. Vejamos: a população paraguaia está equilibrada entre homens e mulheres (prova de que a biologia é mais relevante do que as ciências sociais); na última década, mulheres indianas tomaram conta das universidades mais disputadas na Grâ-Bretanha (fato para o qual contribuiu a péssima educação inglesa, mãe da ideia de que corrigir redações é bullying); e judeus mantém a fama de prósperos negociantes.

Então por que cada vez mais políticas inclusivas? Por que cada vez mais se fala em termos como “distribuição de renda”, “justiça social”, “minorias” etc. etc. Na minha opinião, a resposta está na (pseudo) incontestabilidade desses termos. São expressões mimosas, num mundo de mimados. Se você não quiser ser mal visto jantar de inteligentinhos da galerinha classe média, jamais divirja de quem defende essas ideias (a não ser que você tenha repertório literário, e não tenha medo de causar uns constrangimentos com o seu cunhado vegano).

Ocorre que o jantarzinho de inteligentinhos é o reflexo de nosso ambiente público. Quem produz conteúdo no nosso país não é o pequeno empreendedor, o motoboy, e muito menos o agricultor. Estes caras não têm tempo para escrever. Quem produz conteúdo é essa galerinha inteligentinha de classe média. São eles que dominam as redações dos jornais que você lê. São eles que dão aula nas universidades que o seu filho frequenta. O ensino médio...bom, este já está perdido há muito tempo. No outro lado da moeda, essa incontestabilidade gera votos (bingo!). Afinal, em terra de mimados, alguém suspeitaria da índole do candidato que promete combater a desigualdade, melhorar a distribuição de renda, lutar contra o racismo e, de quebra, lutar pelos direitos dos vira-latas idosos (filhotes já não estão com nada)? Jesus Cristo invejaria este homem!

Quando a pauta, e mesmo a existência, de políticas públicas está relacionada a questões puramente sentimentais, sem o mínimo substrato objetivo, a história nos diz que o resultado não costuma ser bom. Por doze anos vivemos sob a pena de um partido populista, fisiologista e imediatista, um partido vocacionado a resolver a dar respostas sentimentais a problemas reais. Elegeram-se prometendo ajudar classes mais baixas e minorias. Hoje são justamente esses que pagam a conta mais cara. Os serviços públicos nunca foram tão precários. O crescimento econômico é pífio. O desemprego é recorde.

O Poder Judiciário também não foi poupado. Ignora-se país ocidental sério que não permita financiamento de campanhas políticas por empresas. Da mesma forma, ignora-se país sério em que esta decisão caiba ao judiciário e não ao parlamento. E não precisamos ir muito longe para lembrar da baixaria que é nossa justiça e legislação trabalhistas. No âmago de proteger o trabalhador, a regulação foi tão longe que gerou uma quebradeira em micro e pequenas empresas - as maiores geradoras de empregos. Mais uma vez, quem paga a conta é o próprio trabalhador, que agora passa o dia na fila do CINE.

O prestígio a autoindulgência, ao imediatismo e ao sentimentalismo público são males a serem evitados. Em regimes democráticos sempre será um problema conduzir políticas sentimentais para solucionar problemas reais. Enquanto o empreendedor, o motoboy, o agricultor e o comerciante continuarem estampando o estereótipo do Tio Patinhas malvado; enquanto o sindicalista, o estudante de humanas, a galera que espera a salvação através da mão do próximo presidente, e o seu cunhado vegano forem considerados os bonzinhos da história, nosso país jamais será sério. Continuaremos a chorar nossa pureza imaculada, e a comida em breve vai faltar. A realidade, essa santa, sempre se impõe.

Comentários

  1. Olá, boa tarde!

    Gostaria de saber quando o autor irá atualizar o site... Sinto falta!

    P.

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