Crime de Responsabilidade
Estando já contabilizados os acontecimentos que monopolizaram o
cenário político na última semana, exaltando vozes e corações por aí à fora, é
chegado, enfim, o esperado momento da racionalidade. Relembro os fatos. No início da semana a presidente Dilma nomeou
seu antecessor para ocupar cargo de Ministro Chefe da Casa Civil. Ato contínuo,
veio à público áudio originado de interceptação telefônica dando conta de que a
referida nomeação deu-se, em verdade, com finalidade de lhe conceder garantias
processuais, nomeadamente a prerrogativa ser julgado perante o Supremo Tribunal
Federal.
Pois bem. Superado o ambiente da manchete, necessária a análise
jurídica do imbróglio. Abstraio, inicialmente, a circunstância do teor dos áudios
divulgados, bem como da legalidade da própria divulgação (o que comentarei mais
a frente). Assim, é lícito dizer que a referida nomeação, em princípio, é
válida. Sendo ato político, a Constituição faculta à presidente da república nomear
os ministros de Estado segundo seu bel alvedrio (CF, art. 84, inc. I), devendo aqueles
apenas contar com mais de vinte e um anos e estar no gozo de seus direitos
políticos (CF, art. 87).
Pode-se, sob outro aspecto, levantar a questão moral.
Pergunta-se: no atual estágio civilizatório, é ético nomear cidadão investigado
pelos crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e ocultação de
patrimônio para exercer cargo de chefia no mais relevante ministério da
república? Aí cada um responde segundo seu critério de justiça.
Mas o fato é que vieram os áudios à público. Disse a presidente: “Lula, estou
te enviando o termo de posse, só usa se for necessário”. Pois bem, há muito o
direito administrativo desenvolveu a teoria
do desvio de finalidade. Instituto de
origem francesa (détournement de pouvoir),
sua premissa básica é que a Administração Pública deve orientar suas atividades
de acordo com o interesse público, escopo maior deste ramo do direito. Assim, admite-se
que o Judiciário, ou a própria administração, invalide ato administrativo em
desacordo com a norma. Por exemplo, um chefe descontente que remove servidor
para outra cidade em razão de desavenças pessoais incorre em desvio de poder,
na medida em que a remoção não pode ter caráter punitivo. Ou ainda, se a
administração municipal desapropria imóvel onde funciona a sede de determinada empresa,
e posteriormente verifica-se que no mesmo local está sendo instalada outra
empresa, configura-se o desvio, uma vez que a desapropriação deve ser motivada
por interesse público.
Por sua vez, a nomeação de cidadão para ocupar cargo de ministro
de estado pressupõe que o presidente da república julgue as qualidades do nomeado
convenientes para o exercício do
cargo. Seja o nomeado um técnico na área, um articulador político ou sirva de afago
a partidos da base, nada disso importa. Tendo caráter eminentemente político, a nomeação segue critérios exclusivos
(e subjetivos) do presidente da república, queira-se ou não.
Não obstante esta (criticável) liberdade que a Constituição
outorga ao chefe de Estado, limites há. Veja, o que motiva a nomeação de um
ministro, guardados os critérios pessoais do presidente, ainda é o exercício do cargo. E percebe-se dos áudios
divulgados que em momento algum a presidente Dilma interessou-se que seu
antecessor exercesse o cargo de
ministro. Convenhamos, quem diz enviar termo de posse para ser firmado “em caso
de necessidade” pode querer qualquer coisa, menos nomear um ministro! A expressão “em caso de necessidade”, à míngua de demonstrar o
interesse da presidente nas qualidades do nomeado (sejam estas quais forem), é,
em última análise, uma carta branca ao ex-presidente, que poderá dela fazer uso
se superada determinada condição (em caso de...). Houvesse real interesse da
presidente para que Lula exercesse o ministério, caberia a ela simplesmente
nomeá-lo, sem qualquer condição.
Este fato, por si só, já é razão suficiente para a anulação do
ato de nomeação. Ocorre que a situação fica ainda mais melindrosa quando somada à circunstância de que o ex-presidente pode há qualquer momento virar réu em
processo criminal. Uma vez ministro, Lula só poderia ser processado com
autorização do Supremo Tribunal Federal. Aqui a questão ganha especial
gravidade, pois, se devidamente comprovada, configurar-se-ia tentativa de interferência
na atuação do Poder Judiciário, podendo ensejar em crime de responsabilidade, e
consequente perda do cargo de presidente da república (Lei 1.079/50, art. 4º,
inc. II).
No que concerne à legalidade do levantamento do sigilo das
escutas, situação que ganhou relevo e atiçou corações e manifestações de
repúdio à conduta do magistrado responsável pelo caso, convém asseverar o
seguinte. No ordenamento jurídico pátrio não há notícia de norma, expressa ou implícita,
que impeça um juiz de direito de levantar o sigilo de um processo, ou parte
dele. Pode-se até questionar esta conduta sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade,
e verificar se ela foi adequada quando submetida aos critérios do interesse
público pela informação e à segurança da presidente da república. Nenhuma
dúvida quanto a isso.
A dúvida quanto à legalidade é outra. No momento em que a fonte da
prova, Lula, mencionou em ligação telefônica o nome de autoridade com
prerrogativa de foro por função, no caso a presidente da república, a escuta
deveria ser imediatamente suspensa, e o material obtido encaminhado à
autoridade competente, no caso o STF. Cediço que os fatos não se deram desta maneira,
pergunta-se: poderia esta escuta ser usada como prova na decisão que impediu a
posse de Lula, então ministro de estado?
Em uma primeira análise, a resposta é inegavelmente negativa. A
prova seria ilícita. No entanto, há fatos que merecem destaque. Primeiro. A
própria presidente da república admitiu a conversa. Com efeito, no dia 16 de março, por
volta das 23 horas (repare que, diante da gravidade dos fatos, funcionários laboravam
até altas horas da noite no planalto), a secretaria de comunicação da
presidente divulgou nota admitindo a conversa e fazendo referências ao seu
conteúdo. Segundo. No dia seguinte, 17 de março, Lula, então ministro, em
discurso de posse, também mencionou a conversa, ainda que criticando sua
divulgação. Estamos diante do instituto da confissão
extrajudicial, com força para provar a conversa e seu conteúdo,
independentemente da legalidade formal nas interceptações (CPC, arts. 389 e
seguintes).
De outro lado, é fato notório que o ex-presidente Lula é alvo de
investigação por pelo menos duas operações capitaneadas pela Polícia Federal:
Zelotes e Lava Jato. Cumpre relembrar ainda que no dia 4 de março do presente
ano o ex-presidente foi conduzido para prestar depoimento na qualidade de
investigado, fato notório e explorado às escâncaras pela mídia. De forma
paralela, o ex-Presidente era investigado num esquema de fraudes, desvio de
recursos e lavagem de dinheiro no âmbito da cooperativa Bancoop. Em 10 de março,
foi ele denunciado pelo Ministério Público de São Paulo. Na peça, foi postulada
a decretação da prisão preventiva. Em 14 de março, fundada na conexão com as
investigações da Operação Lava Jato, a juíza da 4ª Vara Criminal de São Paulo
declinou da competência da respectiva ação penal para o Juízo responsável por
aquela Operação, a 13ª Vara Federal de Curitiba. Assim, sublinhe-se que naquela situação era público e notório
que o ex-presidente poderia ser implicado em ulteriores investigações, preso preventivamente
e processado criminalmente. E, sempre relembrando, fatos notórios também não dependem
de prova (CPC, art. 374, inc. I).
Essas duas circunstâncias – confissão e notoriedade -, demonstram
que a nomeante (Dilma) e o nomeado (Lula) tinham plena ciência de que este
último poderia a qualquer momento ser processado criminalmente, inclusive com
decretação de prisão preventiva. E quando a essas circunstâncias soma-se que o
teor da nomeação se deu de forma condicional
(lembre-se: “usar o termo de posse em caso de necessidade...”), é lícito concluir, com elevado grau de probabilidade, que a única motivação da presidente da república era conceder um verdadeiro
escudo ao ex-presidente, protegendo-o das investigações e do juízo natural de
Curitiba, prejudicando, pois, a atuação independente do Poder Judiciário.
A conduta da presidente da república, além de incorrer em manifesto desvio de poder - reconhecido e declarado por corajosos magistrados federais de primeiro grau, e posteriormente confirmado pelo Supremo Tribunal Federal -, a coloca em delicadíssima situação, de modo que a perda de seu mandato é uma possibilidade cada vez mais presente.
PS: Terminando este ensaio, acabo de ler que a ministra Rosa
Weber negou seguimento a Habeas Corpus
impetrado pela defesa de Lula. A investigação, com isso, permanece na justiça
federal de Curitiba.